quinta-feira, abril 20, 2006

500 anos para lembrar e pedir perdão



"Sejamos honestos... Há alguém que goste de judeus?" A frase não é de um dos frades dominicanos que terão incitado as gentes lisboetas ao massacre de 4 mil cristãos-novos, em 1506, durante a "semana santa". Não tem cinco séculos, nem sequer um: é de há dias, escrita na Internet como comentário anónimo à iniciativa de Nuno Guerreiro Josué, que no seu blogue ruadajudiaria.blogspot.com propôs o assinalar da data com uma vigília no Rossio.

Mas às sete da tarde, hora para a qual a comunidade israelita de Lisboa marcou a leitura de uma oração aos mortos, as pessoas reunidas no Largo de São Domingos, junto à igreja de mesmo nome onde terá tido início o massacre, não chegam à centena, contando com vários membros da comunidade israelita, identificáveis, no caso dos homens, pelo uso da kippah (solidéu).

Entre os "não judeus" - seja lá isso o que for -, alguns rostos conhecidos. O presidente da Comissão de Liberdade Religiosa, Menéres Pimentel, o actor João Lagarto, o padre Peter Stilwell (que veio em representação oficial do patriarcado) o director do Público, a filósofa e escritora Maria Filomena Molder. "Porque é que as pessoas não vêm? Não vou opinar sobre isso", responde a última, que, com uma amiga, veio para que "a nossa memória não seja um saco roto". Mas admite: "Há uma certa indiferença. Isto está ligado à supressão da memória, que é um problema muito português."

Numa cidade em que, como frisa Esther Mucznik, a presidente da Comunidade Israelita de Lisboa, não existe um único marco público relacionado com a perseguição dos judeus (a CIL fez uma proposta nesse sentido, a aguardar despacho), a memória dos crimes contra aqueles que chegaram, no século XV, a ser 10% da população e são hoje, no País todo, menos de três mil não convocou sequer uma figura de proa da Câmara de Lisboa. Falta assinalada por Abílio Galinha, que, de kippah, se diz "em processo de conversão ao judaísmo": "Lamento muito que o presidente da câmara tenha preferido a inauguração de um casino."

Entre o pavilhão do futuro e a assunção de um passado doloroso, muitos mais não hesitaram. Da chamada "classe política", só o BE teve presença visível: três deputados, incluindo Francisco Louçã, que vieram "fazer um encontro com a História". Um encontro que até ao momento não mereceu, no Parlamento, qualquer menção. "Vamos talvez propor um voto, mas não tínhamos pensado nisso", adianta Louçã.

Foi por "medo do esquecimento", "desencadeado pela percepção de que a data iria passar completamente despercebida", que Nuno Guerreiro, a viver em Nova Iorque, propôs a homenagem. O objectivo foi em parte atingido. Mas o seu pedido de 4 mil velas acesas no Rossio, uma por cada judeu massacrado pela turba, não deverá ser atendido. Esta tragédia, ao contrário das de novela, dá, como diz Filomena Molder, que pensar. E 500 anos talvez não tenham chegado para a digerir.


in "Jornal Notícias" de 20-04-2006